Artista

Lygia Pape 1990

Entre o olho e o espírito

por Fernando Cocchiarale

 

Lygia Pape e a renovação da arte brasileira

Da mesma geração artística e filiação estética que Lygia Clark e Hélio Oiticica, Lygia Pape pertenceu, como eles, ao Grupo Frente (1953), núcleo do Concretismo no Rio de Janeiro. Ao longo dos anos cinquenta, junto aos demais artistas deste grupo, amadureceu as divergências poéticas com os concretistas de São Paulo, até chegarem à dissidência Neoconcreta, formalizada em manifesto e numa exposição, em 1959. Com Clark e Oiticica, Pape estava no epicentro da mais inventiva vanguarda jamais surgida no Brasil. É pois uma das mais importantes artistas brasileiras de todos os tempos. A ressonância de seu trabalho não pode ser portanto aferida sem que remetamos sua inquietação experimental a esse momento fundador da arte brasileira contemporânea.

Em texto recentemente publicado sobre a obra de Pape, A Lógica da Teia: o crítico inglês Guy Brett afirma que “Foi esse espírito rebelde da vanguarda brasileira nos anos cinquenta e sessenta que a possibilitou penetrar a fundo as ideias de abstração europeia sem qualquer cerimônia exageradamente respeitosa ou sentimento de inferioridade. Era possível, portanto, para estes artistas visar o universal, até o cósmico, estando ao mesmo tempo imersos no local e no particular. Eles conseguiram escapar à sorte típica dos artistas do “terceiro mundo”: a de fornecer à metrópole imagens de escape exótico. Em vez disso, valiam-se da realidade brasileira para tentar resolver alguns dos dilemas contemporâneos mais profundos. (…) Não se pode encaixar o trabalho desses artistas no esquema da arte do pós-guerra como se ele fosse uma variação local de movimentos centrados na Europa ou na América do Norte. A fusão particular que eles realizaram, à medida que se tornar mais conhecida, deve mudar os princípios básicos de interpretação daquela história. No processo, o elo entre os artistas brasileiros e certos artistas do ocidente – especialmente em torno das inovações da “participação do espectador”- também se tornará claro.” 2

Os primeiros contatos de Guy Brett com a produção contemporânea brasileira foram ainda na década de sessenta. Ele percebeu que alguns artistas da vanguarda deste país formulavam de maneira explícita e inédita a superação de um impasse constitutivo da cultura ocidental: o dualismo entre o corpo e a mente, entre o sensorial e o intelectual, entre o olho e o espírito.

Lygia Pape e Guy Brett Exposição “Forma Brazil”, Nova Iorque, 2001.

Vinda de um britânico, cujo interesse pela produção artística do Brasil foi despertado por estas questões e não por ufanismos provincianos, como se poderia aventar caso viesse de críticos brasileiros, a avaliação de Guy Brett é não só insuspeita como lisonjeira e reveladora. Ela nos chama a atenção para um fenômeno excepcional. Essa vanguarda sul americana, brasileira e sobretudo carioca conseguiu, contra o presumível, superar uma equação cultural ainda hoje bastante comum na América Latina: aquela que valoriza as temáticas nacional-populares, como fator de resistência ao universalismo colonizador europeu. Com isso pôde lançar, há cinquenta anos atrás, os alicerces de uma arte simultaneamente própria e universal.

Responsável pela valorização do tema em detrimento da pesquisa formal, essa equação nativista situa a produção artística moderna do “terceiro mundo” num campo oposto ao das vanguardas históricas europeias. Ao sair do terreno especializado da forma e das linguagens para o da tematização de conteúdos extra-artísticos (sociais, mitológicos, regionais ou nacionais) a nossa produção artística cortou qualquer possibilidade de contraposição alternativa ou de diálogo com a arte internacional. A suposta defesa de nossos valores próprios, ao invés de distinguir-nos das vanguardas europeias e americanas, valorizando-nos, teve como único resultado concreto a auto-exclusão da arte brasileira, do debate e da pesquisa de novas linguagens por três décadas. Só nos foi possível superar esse impasse quando da penetração do abstracionismo e do construtivismo no Brasil do pós-Segunda Grande Guerra. Avessos à tematização, os abstracionismos obrigaram-nos, enfim, a cumprir o “serviço militar da forma” condição indispensável para a consolidação do modernismo brasileiro e de sua posterior superação na passagem dos anos cinquenta para os sessenta.

 

Tecelar, 1957

 

A onda renovadora que varreu a arte do país não era, no entanto, homogénea, já que a pluralidade do ambiente cultural brasileiro, ainda que considerada num âmbito restrito às novas tendências abstratas e construtivistas que então floresciam, fomentava mais o debate do que a comunhão de idéias e projetos. De um pano de fundo configurado por diversas propostas de modernização, a mais radical, a única vanguarda que correspondeu completamente ao espírito rebelde mencionado por Guy Brett e que formulou propostas palpáveis para a superação do dualismo corpo / mente foi a Neoconcreta (1959). Alguns de seus integrantes como Lygia Pape, Lygia Clark e Helio Oiticica experimentaram em seus próprios processos de trabalho, no lapso de uma década, a consolidação da peculiar experiência modernista brasileira e também sua superação por meio de propostas sintonizadas com a nascente contemporaneidade.

Um pouco de história

Entre 1947 e 1951 o circuito de arte brasileiro passou por transformações radicais: num período tão curto de tempo foram criadas instituições culturais de ponta, tais como o Museu de Arte de São Paulo (1947), os museus de arte moderna de São Paulo (1948) e do Rio de Janeiro (1948) e, finalmente a Bienal de São Paulo (1951).

Por trás dessas ações havia porém um dado novo. Todas elas resultaram de projetos concebidos e realizados pela iniciativa privada. Foi a primeira vez na história cultural do país que as classes dominantes assumiam sua responsabilidade cultural, tradicionalmente delegada ao Estado. Talvez possamos explicar esse comportamento excepcional das elites brasileiras (já que depois tudo voltou ao que era antes) a partir do entusiasmo gerado pela vitória aliada contra o Eixo, da qual o Brasil participou como coadjuvante. O triunfo norte-americano influenciou-nos ao ponto de determinar a substituição definitiva dos paradigmas culturais europeus, sobretudo franceses (que haviam dominado a vida brasileira desde o reinado de D. Pedro II), pelos americanos. Tal como os empresários estado-unidenses, os empresários brasileiros quiseram, ainda que por um breve período, participar diretamente da renovação cultural do país.

A súbita circulação de obras das vanguardas internacionais nestas instituições recém fundadas logo fez sentir seus efeitos. A nossa acanhada produção modernista, então marcada pelo realismo social, viu surgir a contragosto os primeiros núcleos de artistas abstrato-concretos, tanto no Rio, quanto em São Paulo, formados por alguns jovens das novas gerações. Mas devemos considerar também outros fatores que contribuíram para as transformações ocorridas na arte brasileira do pós-guerra: a presença benéfica e reoxigenadora, no país, de artistas como Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szènes que se transferiram para o Rio de Janeiro por causa da Guerra; o retorno de exilados da ditadura Vargas (1937-1945) do porte do crítico Mário Pedrosa 3.

No final da década de 1940 já estavam em ação tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo, respectivamente, os embriões dos grupos concretistas Frente e Ruptura, que só seriam efetivamente criados no começo da década de cinquenta. Ao lado de outros artistas que trilharam a via informal da abstração estes jovens seriam agentes da grande transformação a que seria submetida em breve a produção artística brasileira.

Embora a arte internacional gravitasse em torno da subjetividade inerente à arte abstrata (o Expressionismo Abstrato americano, a Abstração Informal europeia e, posteriormente, o Tachismo ), no caso do Brasil (e também de países como a Argentina e Venezuela), a objetividade das idéias construtivas teve uma penetração muito mais profunda. Essa preferência foi certamente determinada pela conjuntura política, social e cultural brasileira de então.

Período de intensa industrialização no país, a década de cinquenta mobilizou segmentos importantes da arte e da intelectualidade em torno das transformações em curso, simbolizadas pela construção da nova capital, Brasília, inaugurada em 1961. Sob o signo da mudança é claro que os jovens artistas não tiveram quaisquer dúvidas. Entre as tradições populares, cultivadas pelo Realismo Social, dominante na arte do país, que os tornava reféns do passado, e a disciplina inerente ao Construtivismo, que os permitia projetar o futuro, eles preferiram correr os riscos de apostar no novo.

Os grupos concretistas de São Paulo, Ruptura, lançado em 1952 (Lothar Charoux, Hermelindo Fiaminghi, Geraldo de Barros, Judith Lauand, Luiz Sacilotto, Waldemar Cordeiro , etc.) e do Rio de Janeiro, Frente, formado em 1953 (Amílcar de Castro, Aluísio Carvão, Décio Vieira, Ferreira Gullar, Helio Oiticica, Ivan Serpa, Lygia Clark, Lygia Pape, Weissmann, etc.) trabalharam desde sempre a partir de orientações opostas. Enquanto os primeiros propunham a obediência aos princípios formais, cromáticos e espaciais formulados pelo Concretismo (em 1930, por Theo Van Doesburg, e posteriormente, em 1935, por Max Bill) os últimos nunca se sujeitaram a esses princípios, já que consideravam essencial o caráter específico e pessoal de suas experiências.

Se a fidelidade aos princípios da Arte Concreta situava a produção do Ruptura na órbita da razão, a valorização da experiência pelo Frente fazia com que seus integrantes transitassem entre razão e sensibilidade, sem hierarquizá-las. Tal diferença de raiz, ainda que consideremos seu denominador comum geométrico, determinou desde sempre um relacionamento tenso e polêmico entre esses grupos.

Por ocasião da l Exposição Nacional de Arte Concreta (e última), realizada em Dezembro de 1956, em São Paulo, e, em Fevereiro de 1957, no Rio de Janeiro, os dois grupos puderam confrontar-se, enfim, em todos os aspectos e revelar ao público suas diferenças. A partir de então a dissidência entre esses grupos radicalizou-se a tal ponto que, após prolongado debate na imprensa, os artistas do Frente rompem formalmente com os do Ruptura e criam, em 1959, o Neoconcretismo.

 

Relevo, 1955

 

Entretanto, ao contrário do que seríamos levados a supor, o principal legado Neoconcreto para a arte contemporânea brasileira não foi formal (construção), mas, metodológico. Consiste na valorização do experimental (processo) frente a quaisquer princípios normativos que limitem a invenção. A originalidade das obras de Lygia Clark, Helio Oiticica e Lygia Pape, por exemplo, deve ser creditada antes à experimentação, que lhes permitiu transcender as questões formais do Concretismo e depois do próprio Neoconcretismo, do que à estreita opção pela geometria, feita, aliás, por outros setores da vanguarda brasileira sem os mesmos resultados.

A contribuição de Lygia Pape

Um denominador comum às poéticas de todos os neoconcretos foi a busca da integração efetiva do espaço da obra com o espaço real. Para isso deslocaram a oposição entre forma e fundo, antes restrita aos limites físicos internos dos trabalhos, para a integração entre obra e espaço real. Propunham, pois, uma nova percepção na qual o fundo já não se restringia às dimensões objetivas do suporte, uma vez que a deliberada supressão da moldura nos trabalhos bidimensionais, e da base nos tridimensionais, buscava a superação do dualismo existente entre o espaço convencional da arte e o espaço real, o lugar da arte e o mundo.

 

Ballet Neoconcreto Nº 2 , 1959

 

Sobre essa questão essencial do Neoconcretismo, Lygia Pape declarou (ao falar sobre seu Ballet Neoconcreto nº 2, apresentado no Rio de Janeiro em 1959): “Durante a apresentação ocorreu também um momento especial, quando a placa rosa começou a recuar, de encontro ao fundo infinito negro, e de repente você tinha a impressão de que o rosa, que era matéria, se transformava no espaço, com o negro passando a ser forma. Um tipo de ambivalência semelhante ao que acontecia também na minha gravura”… 4(P. 64).

Mas a formulação do problema do dualismo foi sendo amadurecida pouco a pouco, e em graus variados, desde o grupo Frente até o Neoconcretismo. No caso de Pape este amadurecimento pode ser observado na investigação de diferentes suportes, ao longo deste período pioneiro.

As suas pinturas do período do Frente embora não tirem partido da seriação formal, possuem características eminentemente concretistas, como a nítida distinção de forma e fundo. A disposição dinâmica dos elementos formais destes trabalhos (quadrados combinados com linhas diagonais entrecruzadas, com diversas angulações em relação ao eixo dos quadros) contrasta com a regularidade dos relevos realizados à mesma época.

 

Pintura, 1954

 

Os relevos exploram a seriação, porém inserem-na num conjunto qualificado pela solidez dos taquinhos geométricos (quadrados, retângulos, triângulos) e das superfícies quadradas de madeira sobre as quais estão colados numa ordem rítmica. Pintados de duas ou três cores, estes relevos incorporam-se à parede (espaço real) como se delas fizessem parte. A sua integração óptica e táctil é criada graças a um artifício cromático: as laterais coloridas do suporte contrastam com o branco das paredes, da mesma forma que a cor lateral dos tacos destacam-nos do branco da superfície dos trabalhos. Destas duas quebras cromáticas das espessuras em relação às superfícies da parede e do suporte, resulta, paradoxalmente, uma sensação perceptiva de continuidade que faz com que os relevos pareçam uma protuberância geométrica das paredes do espaço expositivo.

 

Tecelar, 1958

 

Com os Tecelares (1955 / 1959), únicos exemplos de xilogravura neoconcreta, e os Ballets o ciclo completa-se. Lá pelo início da década de sessenta o Neoconcretismo, conforme previa seu manifesto de 1959 5 dissolve-se.
Enquanto Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Aluísio Carvão e Décio Vieira, continuaram a investigar as possibilidades expressivas das formas geométricas, as experiências de Pape, Clark e Oiticica terminaram por expandir a proposta Neoconcreta de inserção da obra no espaço real. Tratava-se agora de formular experimental e sensivelmente a integração da arte com a própria vida.

A fita de Moebius 6 é para Lygia Pape uma espécie de metáfora: “…quando você tem uma fita, inicialmente há sempre um lado de dentro e um lado de fora; mas se você torcer uma destas pontas, tornar a ligá-la e então passar a percorrê-la com o dedo, você não vai ter mais o dentro e o fora. Você vai ter um plano contínuo, o conceito passando de um espaço interno para um espaço externo num movimento deslizante.(…) Introduz a idéia de arte e vida se misturando, abolindo ou negando o espaço sacralizado da sala de exposição etc., coisas que me mobilizavam muito.” (P.79)

Se a investigação de Clark a encaminhou para a interação sensorial e a de Oiticica, levou-o a procurar a pintura fora do quadro, aproximando-o da vivência espacial e social das comunidades marginalizadas e marginais, Pape, ao longo de sua obra, trabalhou a integração das esferas estética, ética e política. Isto é, ela escolheu agir num terreno ambíguo situado entre a percepção coletiva (não apenas a de teor histórico e cultural, mas também institucional) e a percepção individual (tanto sensorial, quanto cognitiva) do espaço e da imagem brasileiros.

 

Ballet Neoconcreto Nº 1, 1958

 

Das xilogravuras aos Ballets Neoconcretos (nos quais bailarinos foram reduzidos a motores, pois apenas emprestavam o movimento de seus corpos às formas geométricas que os ocultavam), apresentados no Rio em 1958 e 1959; dos Livros da Criação, do Tempo e da Arquitetura concebidos entre 1959 e 1960 aos Livro da Luz (também chamado Noite / Dia, que trata do cinema, seus cortes e a montagem) e dos Caminhos, iniciados em 1963 e concluídos em 1976 (livros-objeto cujas pranchas são diagramas cromáticos, formais e espaciais da criação e das nossas criações, do fluxo do tempo e da historicidade dos espaços construídos pelo homem), passando pelos filmes experimentais (1960-66) e pelas experiências participativas (O Ovo e o Divisor, por exemplo, apresentados pela primeira vez nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1968) a aproximação progressiva com a vida introduziu na obra de Pape a temporalidade (fluxo) e a brasilidade (narrativa).

O tempo porém não é aqui uma representação. É sobretudo um fluxo real: fluxo de partes que se desdobram no tempo (Livro da Criação, Ballets, por exemplo), fluxo de ações performativas (O Ovo) e da participação do público (Roda dos Prazeres, Divisor), fluxo da história e memória brasileiras, e, finalmente o fluxo da própria experiência da artista, que vem sendo marcada pela constante transformação dos meios e dos resultados da sua produção.

 

Livro da Criação – “E o Homem Inventou a Roda”, 1959/60

 

No final da década de sessenta, época da maior repressão política da ditadura militar no Brasil (1964 / 1985), os seus trabalhos voltaram-se para a crítica dos valores e repertórios das elites e das instituições culturais (a Caixa de Baratas, por exemplo apresentava uma coleção desses insectos dispostas em total ordem numa caixa de acrílico).

Lygia radicaliza, pois, por meio de uma linguagem não-verbal o teor narrativo presente, por exemplo, no Livro da Criação. Dentre todos os neoconcretos Pape é seguramente a artista que foi mais fundo na busca de uma síntese da linguagem visual e da narrativa (associada, pela sua natureza, com os discursos verbais).

Tanto questões universais estritas (criação, tempo, espaço), quanto aquelas que, manifestando-se em qualquer lugar e em todas as épocas, são filtradas pela experiência brasileira (violência, sexualidade, política), até os temas restritos da nossa historia (índios, Amazônia, e outros), são produzidos por meios visuais. A narrativa é pois subjacente. Ancora-se na economia verbal dos títulos dos trabalhos e em algumas referências cromáticas, icônicas e indiciais que configuram as obras.

Nesse aspecto a obra de Lygia retoma a Antropofagia de Oswald de Andrade proposta em São Paulo, no ano de 1928 (Manifesto Antropófago) Sobre essa relação com o Brasil comenta a artista “ Há a questão da antropofagia, da devoração da cultura do outro. Mantos Tupinambás já fiz vários. Um é uma grande nuvem vermelha sobre a cidade, que está só no livro, pois é praticamente impossível de realizar. Porque quando eu atravesso a Baía de Guanabara, faço um filme, imagino baleias, botos, os índios, eu fico sonhando, visito meu passado, a história se superpõe.” 7

 

Manto Tupinambá

Manto Tupinambá, 1996/1999

 

O modelo Antropófago associava o sentido específico da produção cultural brasileira aos rituais de canibalismo de algumas tribos indígenas. Tal como os índios, devoraríamos as influências culturais que nos chegam do exterior para digerí-las conforme padrões abrasileirados por experiências antropofágicas anteriores. Proposta afinada com o experimentalismo, pelo menos no que se refere à valorização do processo. 8

Dentre todas as suas obras talvez as mais emblemáticas, aquelas que sintetizam seu processo, sejam as Ttéias. A primeira delas foi concebida em 1979. Mas somente a partir da década de noventa é que passa a ter diversas versões. As Ttéias são Instalações construídas pela disposição geométrica de fios dourados no espaço. Eles não só delineiam volumes, como riscam linhas quase invisíveis.

As Ttéias produzem um forte impacto pela discreta delicadeza de sua disposição cortante e irradiam, conforme o deslocamento do espectador, reflexos da luz ambiente. Possuem um diagrama espacial muito próximo dos Tecelares. Os veios da madeira da matriz, a disposição em diagonal dos grafismos, os vazios e os cheios que se interpenetram, tudo nestas xilogravuras pode ser relacionado às Ttéias, como se ambas balizassem os limites de uma longa caminhada. O silencioso deslumbramento destas instalações pode ser remetido, por analogia, àquele causado pelo peso e a leveza das catedrais. Lygia Pape faleceu no Rio de Janeiro em Maio de 2004.

 

Ttéia 1,C, 2002

 

 

Notas

1 Título tomado de um texto de Maurice Merleau-Ponty, cujo pensamento serviu para fundamentar, na esfera teórica, a superação, pelo Neoconcretismo, das concepções dualistas indissociáveis da arte clássica (forma e fundo, espaço mimético e espaço real, razão e sensibilidade, projecto e experimentação, etc.)

2 Guy Brett: A Lógica da Téia in Gávea de Tocaia / Lygia Pape, São Paulo, Cosac & Naify Edições, 2000

3 Mário Pedrosa (1900-1981) um dos maiores críticos de arte brasileiros, desempenhou um papel fundamental na defesa e na consolidação do Construtivismo no Brasil. O seu trabalho “Da Natureza Afetiva da Forma da Obra de Arte” (1949) é um dos estudos pioneiros da aplicação da teoria da Gestalt à interpretação da arte.

4 Denise Mattar: Lygia Pape, (p. 54), Coleção Perfis do Rio, Relume Dumará / Prefeitura, Rio de Janeiro, 2003.

5 “Os participantes desta I Exposição Neoconcreta não constituem um grupo. Não os ligam princípios dogmáticos. A afinidade evidente das pesquisas que realizam em vários campos aproximou-os e reuniu-os aqui. O compromisso que os prende, prende-os primeiramente cada um à sua própria experiência, e eles estarão juntos enquanto dure a afinidade profunda que os aproximou.” (Manifesto Neoconcreto, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23/03/1959)

6 A fita de Moebius despertou também o interesse de Lygia Clark, que no Caminhando, parte desse modelo topológico.

7 Denise Mattar: Lygia Pape, (p. 89), Coleção Perfis do Rio, Relume Dumará / Prefeitura, Rio de Janeiro, 2003.

8 Hélio Oiticica e diversos outros artistas e intelectuais, revalorizaram, na década de sessenta, a Antropofagia.